segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Cidades passadas

Eu avistava a nova cidade com o desgosto de quem é difamado. Como quem ama e não fora correspondido, ou fora traído. Essa traição que sentimos ao acordar com o sol ferindo a pálpebra e corroendo o mórbido descanso. O que daríamos para mais um dia adormecidos em sonhos dantescos de fantasia misturada à realidade rotineira, não é? E a cidade vai adormecendo. O uivar do lobo se ouve ao longe, a lua vai tomando seu lugar e os olhos umedecidos ficam aquecidos, meus olhos pelo menos, que se aquecem naquelas cobertas, as mesmas que substituem teu abraço. 
A janela entreaberta deixa entrar um pouco de nostalgia de dias atrás que se eternizam em suspiros, enquanto vemos o tempo voar, parecemos tão assustadoramente distante de ontem. Este presente em que mato é o mesmo em que serei assassinada. Minha alma ferida não cicatrizará tão cedo. Essas badaladas que aplaudem meu coração enquanto ele pára, e retumba nas minhas costelas, serão as mesmas que contarão meu renascer a cada manhã. Quando as lágrimas secas forem atingidas pelo brilho do sol, ninguém notara a face machucada, nem as marcas do intervalo entre meia noite e meia noite e meia. 
E o relógio carrega as lembranças de uma vida estilhaçada, que se esvai pelo mar do tempo, e eu nado contra a correnteza… E luto contra as ondas de cada novo dia, guerrilho contra essa saudade de hoje, para que o futuro não seja tão melancólico quanto a arte de pintar olhos cerrados. Lutei, nadei, e de tanto nadar, meus braços fraquejaram, perdi o ar, me afoguei. Ainda estou me afogando, afundando nas esmeraldas verão, aguardando alguma salvação do laranja de outono. 
Eu vejo a cidade, debaixo d’água, impregnada de dor e consentimentos de ida e partida, vejo o navio naufragando. Que belo naufrágio para ser lembrado desta tarde, e afundou, levando qualquer ponta de nostalgia, restando apenas eu e minha cidade. Minha antiga cidade de arquitetura entristecida. Eu e meu afogamento proposital, eu e minha insistente e teimosa saudade de querer águas passadas e tentar mover moinhos. Mas o passado não dá ímpeto ao ser desalmado, não costura o coração retalhado.