segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O sal das flores


Uma cadeira vazia. Flores com pétalas largas. Vermelhas. Vermelho cor de saudade dolorida, saudade vazia.

Não nasci para sentir saudade.

Mãos solitárias aguardavam o pôr do sol, e o pôr da mesa para um só. Não havia duas xícaras nem duas colheres. Apenas flores quase murchas com a terra do vaso úmida no centro e o cheiro dele se misturando com o ar acalentando o rosto. A chuva naquela hora da noite a lembrava de como eram finos os seus cabelos. O cheiro do cabelo molhado misturado com o perfume ainda com gotas no pescoço dele.
O café estava morno, lembrando o abraço de despedida. Porque não foi apertado nem frouxo, foram só braços pesados conformados com a rudeza da saudade. Até as flores não se deram como mortas, estavam caídas mas ainda exalavam sua cor de sangue. Tudo no meio termo. É isso que a saudade deixa de herança. Meias palavras, meio café, meia tristeza - pois não se sabe triste ou feliz pelo momentos de outrora - e meio amor. Porque metade do amor se vai com ele e a outra sufoca o peito apertado com qualquer vestígio dos dois pela casa.

Foram tantos afagos preenchidos com risadas e entregas. Mergulhos profundos em coração transbordante. O cabelo comprido fazendo cócegas no seu braço, as mãos entrelaçadas que já nem sabiam se desencontrar. A água quente, leve, corpos juntos e cílios úmidos se fechando em um sorriso de par. Sorrisos instantâneos. Quase como o sol quando esquece de se pôr e a lua surge deixando os dois por um momento sublime no mesmo céu. Os sorrisos dos dois entre os beijos são assim.

Os olhos pesados e as mãos cansadas já não conseguem mais sentir saudades. A cortina dos cílios cerra e então volta o rosto dele, as flores rosas e vermelhas, os abraços apertados, o laço prendendo as mãos e o nó no estômago ante a despedida.
Quase jura ela que ouviu a voz dele, a dizer te amo entre sílabas e nuvens mudas. Com as mãos no rosto dela, dizendo que dessa vez não vai doer tanto - mas a saudade sempre dói mais a cada vez, como quem se vinga de quem a subestima.
A água já está parada, intacta nos braços dela e tão gelada!
Qualquer movimento faz pequenas ondas quebrarem como vidro, os dedos descobrem o vazio, a anti fluidez que a nostalgia traz. E o barulho da água batendo nela mesma é ensurdecedor. Qualquer vazio sem a voz dele é torturante. E então a saudade a afoga de olhos fechados. Sal e flores se fazem chorosos, cada pétala despenca de suas mãos e cai como pedra aos seus pés.

A saudade nunca é morna, sempre queima ou congela algo - dentro do corpo.

Azul turquesa


Não. Eu não te perdoei, e nem perdoaria agora. Não amadureci, nem mudou o sentimento que eu tinha sobre nós. Apenas o amor mudou. A forma de amar mudou, as palavras, os gestos são os mesmo, mas sabe uma coisa? O olhar é inconstante e denuncia a quebra da inocência. Aquela pureza cristaliza que o primeiro amor traz antes do primeiro arranhão, do primeiro tapa na cara, da primeira palavra vestida de pedregulho. Esse já foi. E acredito que não sejamos mais a água transparente daquele lago que se enxerga as pedrinhas no fundo. Somos mar, azul, salgado, quebradiço.
Mas saibas, meu amor, que o laranja daquela manhã onde tudo começou se mistura diariamente com o nosso azul. Já é um azul turquesa, meio torcido, meio sujo, mas nosso. Não houve perdão, houve gritos, choro, coração quebrado, toda aquela história que a gente nunca acredita que seja igual às outras, mas sempre é. E eu nunca pensei, também, que fosse passar por cima de coisas tão absurdas e cortantes. Mas cortou, cicatrizou e passou. Superficialmente, claro. Porque no fundo, quando a onde quebra e traz toda a areia pra cima, ainda vêm aqueles grãos mais salgados junto com as lágrimas secas. E as lembranças são as minhas piores inimigas.
Nada disso é culpa tua, meu bem. Nem minha. É culpa da mudança, do amor mutante mas constante. Porque é sempre amor. Mas nunca é limpa uma desculpa esfarrapada.

A noite piora tudo. Vêm as palavras, os toques, os sorrisos, os olhares pela sombra dos cílios. E então o perdão se esconde em alguma caixinha do meu quarto e só resta a paixão pelo teu sorriso pequeno.
Vem o cheiro do crepúsculo e a lua nos conta sobre como nos conhecemos. Passado tantos anos e tu ainda me faz esquecer por um segundo como que chegamos tão perto do fim. E como que chegamos até aqui?

Não. Eu não esqueci como que me apaixonei, eu só esqueço de como pude deixar de te amar por segundos e no outro minuto estava tudo bem. Como que tanto amor pode deixar espaço para ódio?
Já foram tantos sentimentos guardados entre as frestas de nós dois que nem recordo todos. E nem sei como coube tantos. Houve amor e mais um milhão de sensações a parte. Ou talvez tudo isso junto seja o amor, o nosso amor.

E houve tanta vontade de voltar atrás que só tu sabes, não é?

Não. Eu não perdoei. E nem sei se vou algum dia, talvez dentro de alguns segundos dos nossos rostos tão juntos eu perdoara, mas não definitivamente. Aliás, nada dentro do nosso amor é definido. Nada dentro de mim é certeza. Sou dúvida, sou aquele não-sei-o-que-sinto eterno. E tu vai ser aquele arrependimento de todo o coração pra sempre. Seremos a mágoa e a perfeição das ondas salgadas que afogam e machucam a garganta de quem mergulhou sem olhar para a profundidade abaixo.
E não perdoar não foi de todo ruim, pois nos permitimos muita coisa quando não há tanta culpa ou medo. Os erros abrem portas para outros erros, assim como o perdão abre portas para outros tombos. E eu não tombei novamente. Não ser perfeito deixou espaço para também não ser puro. E então depois de muito me ferir, meu bem, aprendi a deixar ser, deixar ir e voltar. O perdão não é a única forma de seguir adiante. Às vezes o mais difícil é perdoar eu mesma pela confiança cega, ou pelo erro proposital. Existem outros caminhos pra nós dois.
Não. Eu não amadureci. Nem um de nós dois o fez. Nós só nos deixamos mergulhar no erro e na indecisão do que vai ser amanhã. Porque tu sabes, amor, que eu sempre fui insegurança e tu sempre foi certeza. Talvez hoje seja o contrário. Não houve aceitação nem esquecimento. Houve mudança. Do lago cristalino passamos ao mar, agitado, inconstante e forte. O nosso amor azul turquesa a gente entende, agora.