Não é uma confissão,
nem apologia, muito menos um desabafo, não é nada... Só estou trancafiada...
Por que, minha criança? Não choramingue, minha cara.
Era madrugada, e parecia que o dia não amanhecera, o melro
não havia anunciado e as pombas do prédio cor-de-rosa não voejavam. O dia
estava cinza, castanho, entoando armas e botas batendo no chão. Não é uma
confissão, mas sou judia, ou polonesa, os dois juntos, enlaçados, grudados.
Raiz da folha morta junto ao chão, está mortificada mas ainda prende-se à
terra, está martirizada mas ainda prende o sorriso, por ora, aprendi a prender
o choro. Mas escorrer lágrimas é bom, sentir dor é bom, asfixiar-se em sua
própria alma assassinada é bom. Aterrorizante é não saber-se Hitler na prisão,
ou judeu em câmara de gás. Não sabemos mais se “Minha luta” era com os impuros
ou contra ele mesmo, não sabemos se morremos pelo gás tóxico ou pela morte de
algo em vida, algo nosso. Algo meu, minha caligrafia, minha dor.
Minha flor. Arrancada cada pétala sem dó, e cada espinho
pranteava, cada perfume exalado misturava-se a fumaça do cigarro. Fui uma
sobrevivente de algo meu, de algo que não queria sobreviver, se algo que devia
ser morto, mas que foi solto e enfumaçado no papel. Algo que sujou meus olhos e
ardeu em minhas mãos. E minhas pobres sórdidas mãos embriagadas de tanto
apertarem-se nas grades das selas, de tanto apertar os arames daqueles campos
de concentração, concentração árdua, martirizaste. E uma prisão culpada pela
morte, um livro amaldiçoado pelos sonhos esquecidos e complexados. Enterrados
sob 7 palmos de terra firme, molhada e orvalhada pelas minhas palavras.
Não tenho mais lágrimas, e não sou mais polonesa, judia. Não
sei mais falar sobre uma Alemanha que prendia que passou décadas enterrando
ideais e sobre um homem pequeno que matou sua grande alma, e não houve perdão,
nunca há. O único sopro de vida que pode perdoar-nos somos nós. Sou eu mesma,
que não aceitei meu perdão até terminar a história de uma doutrina falha, que
perdura até hoje. De uma dor amarga, de um sonho de madrugada que se foi, do
amanhecer de um dia cinza, que morreu em meus olhos, e eu faleci por não contar
as flores, por não escrever sobre um desabafo. Só fiquei trancafiada.
Não foi um relato, nem um choro, foi pranto da janela que abri e tranquei no mesmo instante que as pombas me fizeram sonhar.