quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O tom de castanho empoeirado

Meus braços já se coloriram de azul turquesa de tanto que eu abracei essa almofada azul e derramei sal sobre ela. Há tecido azul encharcado por todo o lado, e há um cheiro dolorido por todo o quarto, aquele odor das nossas manhãs, há dor amanhecida.

Já faz alguns amanheceres que eu não lembro mais das mãos e braços que gravaram o sofá florido da sala, faz algumas tarde que eu sorrio e tenho uma felicidade plena. Mas eu só queria te contar que tudo isso expira pela noite, e eu não sei lidar comigo e o silêncio juntos. Meus pensamentos e o silêncio não combinam, o breu faz piadas com as minhas divagações e desesperos de madrugada, eu que cansei de ser melancolia me tornei uma vestimenta de manhãs ensolaradas transbordada de lágrima salgada. Há azul por todo o lado - pelo menos não é verde.
Há um tornado desde a ponta do meu umbigo até a garganta, e tudo que eu absorvi e não vomitei se instalou nas paredes do quadril, os ossos são visíveis e quase dá para sentir a mágoa cor de mar-refletindo-o-céu caminhando entre a derme e epiderme.

Linhas invisíveis - as mesmas que compuseram o epílogo - descem pelas paredes arranhadas e se convergem em um círculo amadeirado de vulnerabilidade. E só eu sei o quanto odeio ficar vulnerável. Mas cá estou abraçada em amontoados de panos, me condenando na inquisição por ter ficado à deriva de sentimentos, desarmada, suscetível ao tom castanho de certos braços rabiscados.

Os panos pelo chão secam um pranto que já não é mais meu, e a caixa do violão tem tantos lamentos e gritos que não cabem mais as palhetas. Os dedos já não tem força para tocarem um acorde. Poeiras azuladas pousam sobre a madeira e as cordas douradas raspam nos dedos. Havia duas almas num sofá e um violão. Hoje há o violão e raspas de sol ultrapassando frestas, essas revelam o pó azul e verde pairado no ar. Faz um tempo que me tornei colorida, esbranquiçada, contrastada com o meu cerne interno, que está tão nublado e esfumaçado. Dos pulmões vertem restos de tabaco e cheiros de manhãs esverdeadas. Há uma morte linda no colorido dentro de mim.

Sobre alumínio e lágrimas

Água fria sobre os pulsos, veias azuis que convergem para a
palma da mão confundem-se com as vertentes de um oceano que não se sabe mar ou rio. Doce ou salgado. Nem ela mesma sabia se era doce ou salgada. A certeza era a amargura. 
Vidros sujos davam novos contextos para o sol quando os raios batiam na janela. Pouco se adentrava de luz, mas era laranja e opaca. Há muito tempo que ela havia se tornado opaca como essas tais luzes. E também não sabia devia baixar o vidro ou deixar os espectros para o lado de fora, já que havia um tanto quanto dela do lado de fora, e tantos outros sonhos e amor do
outro lado, como se abrisse a janela e deixasse tudo ao vento de 100 km/h. A
dor foi quase como o gélido vendaval cortando a face, rápido, frio, dolorido
por toda a pele, porque sentiu a dor em cada fibra do cobro e fio de cabelo. O
medo se escondia entre as linhas de dobras dos pulsos e dos dedos, as mãos cansadas e com restos de lágrimas da noite anterior. Os dedos já eram salgados por natureza de tanto choro que contiveram e secaram. Luzes douradas e prateadas vindas do mesmo solo, do mesmo ponto, enquanto girava tudo se misturava e era um grande holofote, depois da lentidão ora era prata, ora era ouro. Ela não sabia se era ouro ou prata, a certeza era a ferrugem endurecida em cada canto do corpo – nos dedos
principalmente – o círculo ferrífero envolta dos dedos se desmanchara e deixara
seu resto enferrujado na pele. A pele era uma camada de alumínio que com o
correr das lágrimas se dilatava e nada mais o extraía dali. Era a sensação que
ela tinha sobre uma risada antiga. A superfície de alumínio continha sal, lágrimas, e um resto de coração. Esse conjunto todo só conseguia pensar que começou a viver depois de deixar partir-se ao meio e enferrujar, e ela só pensava que poderia estar vivendo tudo aquilo com a mesma risada antiga. Mas não.
O outro conjunto era de tecido escuro, costurado à mão, leve demais para
permanecer como ela, mole demais para se fortificar como ela fez – e como ela se machucou.
Quanto mais dura a superfície mais difícil se retiram marcas deixadas ali, e as
marcas estavam por toda pele. Como era dolorido ter fortificado tanto um amor
que nem era seu, porque ele sempre foi cobertor de crochê, se costuram os
retalhos aqui e ali, enquanto ela era o prateado coberto de riscos e buracos.
Não havia linha para costuras. Era o tipo ferrífero mais frágil que já existira, mas era sólido, como tudo dentro dela – inclusive a dúvida deixada para trás. O som da risada passada era um tanto quanto dolorosa, mas
havia deixado belos registros à marteladas na pele ferrífera.  Então a menina feita de sal e alumínio deixou a janela trancafiada por enquanto, as lágrimas já haviam secado, os dedos guardavam bastantes sorrisos ultimamente. Mas algumas saliências na prata são visíveis e brilhantes, sulcos cheios de dor e indiferença

O pós-guerra dentro de mim

Um ar sórdido e aquecido adentrava na face e aquecia todos os cantos úmidos de mim. Todos os esconderijos que já estavam mofados - porque faz um tempo que estou a mostra na superfície. Não fiz questão de me trancafiar com as borboletas e nem de me deixar emoldurada em paredes. Já são tantas dores emolduradas. Não posso me resumir às ondas que recuam antes de chegar na areia ou não quebram, apenas envolvem-se no embalo. Eu não nasci para ser calmaria, nem onda de rio.

As folhas amarelas do outono chegaram ao juízo final e tiveram de decidir se caem ou se permanecem para acompanhar os botões da primavera. E eu também me fiz em folha seca que decidiu voejar, procurar novas flores para ver brotar - já que deixei de ser botão a tempos.

Os pés úmidos e gelados roçavam um no outro, as mãos quentes buscavam outras mãos. E é nisso que se resume os braços e a pele: em busca de outra superfície que esquente e atrite contra ela. O medo arrepiando os pêlos na orla.
Rasgos de sol cortavam a mesa esbranquiçada e eu me debrucei, exausta, a mente pelos cantos do quarto, os olhos nas mãos. Cílios compridos e endurecidos acorrentaram cada cheiro dos inúmeros peitos que derramaram lágrimas. Várias noites, várias lágrimas, vários cheiros. Nem o sal os amolece. A parte menos frágil de meu corpo devem ser os cílios. Tanto suportaram, tanto foram esfregados, e ainda há o mesmo número do início do equinócio.
E já anunciando pesares e dores quase anestesiantes, a estação de cores surge com as águas do corpo acompanhando a lua. Cada dia uma nostalgia e desespero diferente. E há gritos para a lua. Há lamentos.
Eu lamentei tantas vezes para as pombas e morcegos que passam pela minha janela, eles voam desesperados. E eu trancada dentro de mim. Minhas paredes são tão quebradiças mas me trancafiam com unhas e dentes.

Carregar a dor emoldurava no rosto e nas mãos é carregar duas malas. As pessoas te olham como se tu fosse ir embora logo, ou como se tu tivesse vindo de um lugar inexistente. E realmente. Eu mesma me parece ser um lugar inóspito, invisível. E ninguém deveria morar em terras tão violentamente medrosas, frágeis. Eu fujo antes da primeira bomba estourar, porque eu já sobrevivi a uma guerra inteira. Os estilhaços grudam na pele e perfuram. Há grades nos buracos. Sou prisioneira de mim mesma do pós-guerra. O período entre guerras não trouxe paz, nem o silêncio da destruição. Há tumulto. Há sentimentos tão vivos quanto eu mesma quando sinto a dor de saudades. Existe uma declaração de paz entre meus próprios territórios, mas eu não os respeitos, ou sou compelida à não respeitá-los.
Eu não sei mais morar em mim.