Sou o cheiro da noite fria, sou dardejada. Sou as manhãs
calorosas, sou uma saudade imensa, memória que não vai embora, lembrança
dolorida e colorida. Sou uma ave que cansou de voar, que nunca aprendeu a
pousar e ficou pendurada nos galhos. Sou aqueles olhos castanhos estranhos,
meio mórbidos meio assustados, sou aquelas mãos pequenas que carregam milhares
de livros e a boca que carrega tantas palavras que ficaram por dizer. Sou a
angústia de alguém que não se foi, e o arrependimento de quem partiu, sou o abandono
dos casais comuns, sou o cansaço numa noite interminável, sou o chá antes de
dormir que fica no criado-mudo, sou o café sem açúcar que esfria e é deixado na
xícara. Sou a voz escampada, tênue e delicada, sou feita de candura e eufemismo,
sou a perda desses e aquela que acolhe os sofrimentos porvindouros. Sou
nostalgia. Vou ser eternamente, a escritora de mártires.
domingo, 7 de outubro de 2012
Ser
Ser, sou. Sou aquela pomba que não voeja que fica nas
calçadas e nas ruas molhadas, pra sentir o brilho das dores que choramingaram
nos pés, sou as asas pesadas e feridas. Sou aquele pássaro morto em cima do
muro, o uivar de algum cão perdido no meio da madrugada. O grito ao amanhecer
naquela casa perto dos trilhos que eu sempre ouvia quando era criança, sou o
medo dos pesadelos que tenho. Sou a insônia que as paredes frias me causam, o
aperto no peito de tanto exalar o que sinto, a garganta inchada de trancafiar o
choro. Sou o púmbleo céu de hoje à tardezinha, sou o idílio de uma paz sublime,
a borboleta amarela que se perde nos meus cabelos. Sou o coração estraçalhado
pela perda de um ente querido, sou um túmulo a sete palmos de terra virgem,
sou a vela que é apagada quando a luz volta e deixa a fumaça perfumada dançar
pelo quarto.
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