quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O pós-guerra dentro de mim

Um ar sórdido e aquecido adentrava na face e aquecia todos os cantos úmidos de mim. Todos os esconderijos que já estavam mofados - porque faz um tempo que estou a mostra na superfície. Não fiz questão de me trancafiar com as borboletas e nem de me deixar emoldurada em paredes. Já são tantas dores emolduradas. Não posso me resumir às ondas que recuam antes de chegar na areia ou não quebram, apenas envolvem-se no embalo. Eu não nasci para ser calmaria, nem onda de rio.

As folhas amarelas do outono chegaram ao juízo final e tiveram de decidir se caem ou se permanecem para acompanhar os botões da primavera. E eu também me fiz em folha seca que decidiu voejar, procurar novas flores para ver brotar - já que deixei de ser botão a tempos.

Os pés úmidos e gelados roçavam um no outro, as mãos quentes buscavam outras mãos. E é nisso que se resume os braços e a pele: em busca de outra superfície que esquente e atrite contra ela. O medo arrepiando os pêlos na orla.
Rasgos de sol cortavam a mesa esbranquiçada e eu me debrucei, exausta, a mente pelos cantos do quarto, os olhos nas mãos. Cílios compridos e endurecidos acorrentaram cada cheiro dos inúmeros peitos que derramaram lágrimas. Várias noites, várias lágrimas, vários cheiros. Nem o sal os amolece. A parte menos frágil de meu corpo devem ser os cílios. Tanto suportaram, tanto foram esfregados, e ainda há o mesmo número do início do equinócio.
E já anunciando pesares e dores quase anestesiantes, a estação de cores surge com as águas do corpo acompanhando a lua. Cada dia uma nostalgia e desespero diferente. E há gritos para a lua. Há lamentos.
Eu lamentei tantas vezes para as pombas e morcegos que passam pela minha janela, eles voam desesperados. E eu trancada dentro de mim. Minhas paredes são tão quebradiças mas me trancafiam com unhas e dentes.

Carregar a dor emoldurava no rosto e nas mãos é carregar duas malas. As pessoas te olham como se tu fosse ir embora logo, ou como se tu tivesse vindo de um lugar inexistente. E realmente. Eu mesma me parece ser um lugar inóspito, invisível. E ninguém deveria morar em terras tão violentamente medrosas, frágeis. Eu fujo antes da primeira bomba estourar, porque eu já sobrevivi a uma guerra inteira. Os estilhaços grudam na pele e perfuram. Há grades nos buracos. Sou prisioneira de mim mesma do pós-guerra. O período entre guerras não trouxe paz, nem o silêncio da destruição. Há tumulto. Há sentimentos tão vivos quanto eu mesma quando sinto a dor de saudades. Existe uma declaração de paz entre meus próprios territórios, mas eu não os respeitos, ou sou compelida à não respeitá-los.
Eu não sei mais morar em mim.

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