Sou tua manhã de inverno, manhã de verão, primavera, outono. Posso ser o barulho na janela, e o amanhecer dos olhos em lágrimas quentes, posso ser um anjo que despencou e apaixonou-se por tantos defeitos, os nossos defeitos. Que tantos montamos. Posso ser doentia em reler velhos livros, e agarrá-los com tanta força quanto pego na tua mão, pois eu crio força, dessa minha fragilidade e o medo de pronunciar borrascas e machucar os quero-quero. Pois eu temo a maior brecha de luz, a clareira no campo a fundo, como a encenação de fuzilamento dos alemães e sovietes, tão aterrorizante. E eu fiquei como mulher presa nas palavras não ditas, contra as grades, olhos vendados, de frente para fuzis e homens que gritam, berram, e declamam mentiras. Todos declamam falsidades e exprimem uma confiança repugnante, todos exalam um perfume enjoado, que enoja somente à minha pessoa, nessa fadiga de ir e não vir.
Posso lutar com os olhos ardentes, não ergo uma sobrancelha por antipatia às pombas, mas porque escondo os olhos e as idéias que se martirizam para fugir. E as palavras que não digo doem, ardem, somente acalmam quando as grafo em papel sujo ou limpo, quando a caneta toca a ponta da alma e faz as lágrimas brotarem no calar da noite, nos dantescos vales que tanto dou cores. E bordo nossas estórias, tão belas estórias em manhãs e tardes cruzadas, tantos medos revoltados e tantas armas sem bala. Tanta frase mal colocada, tanta gente guerrilhando e gritando enquanto eu abro os livros para entrelaçar-me à minha ignorância de querer viver em paz e perdões.
E posso ser imatura, ou fruta madura demais, que já caiu ao orvalho longe do pé. Nem sequer dizemos adeus, somos supostamente assaltados no nosso íntimo para ouvir e dizer mentiras tão absurdas quanto as torturas em campos de concentração. Posso ser general ou polonesa. Vítima ou vilã. Tanto fez nessas alturas das nuvens, porém ainda desejo ser a tua manhã de inverno, pra sempre.