segunda-feira, 4 de março de 2013

Rosto da saudade

Andava fraquejante pela casa, pernas doídas e as mãos imbuídas de um cheiro familiar, contemplava o rosto dele.
Rosto de quem?
Esse rosto que tanto descrevo nos papéis, que tanto falo, tanto vejo, e não sinto. Essas mãos marcadas de tinta, com caminhos longos de uma vida quase sonhada, essas rugas que falam, que contam seus poemas, seus atos. Esses olhos úmidos, envelhecidos que rejuvenescem quando falam da cortina vermelha que subia, das suas falas, e do texto que tantos anjos escreveram pra ti. Esse rosto que me visitou ontem à noite, essa alma enrubrecida e exalante de uma calma sem fim, de um cheiro de galho seco de outono, essa alma que me reconhece tão fácil, essa mesma que me visitou ontem a noite.
Usava um terno, aqueles seus preferidos de quando ia te visitar. Uma menina de 8 anos que tanto teria a te dizer, que tanto calou-se e tanto pranteia, chora, pedindo saudade, pedindo qualquer relato sobre o que escrever de ti. O que prosar de um alguém tão distante, com tanta afinidade para ouvir os pássaros?
E o terno era escuro, cheiro de cigarro, um cheiro misturado com perfume fresco, de rosa desabrochada. E a fumaça do cigarro subia pelas paredes, ouvindo suas histórias sobre a Alemanha nazista, e os contos aterrorizantes de como a vida é dura, e como podemos ver pequenas flores na beira dessa dura estrada.
Havia prateleiras de livros, orvalhados por alguém que não podia tocá-los, como essa mesma estante que habita meu quarto, impregnado e vazio por algo que não respira mais. Tu me dissestes para ouvir o som dos querubins, da primavera que anuncia um nascimento, e eu ouço, escuto com toda a minha força, mas é difícil, tão surdo se torna o canto quando é de tristeza que não finda.

O quarto já estava envelhecido, enfumaçado pelos anos que correram, e uma poeira de saudade pousou sobre mim, e agora, como respiro com toda esse pó?
E não consegui sabê-lo, não pude ouvir as pombas contarem seu segredo sobre a escrita, nem ouvir um pouco sobre o dom de saber narrar, sobre o dom de se apaixonar todos os dias pelas palavras. Elas não me contaram que seria tão belo ver seu rosto com as marcas de quem vai à guerra, mas na verdade só viveu uma vida, inteira, toda, sem sequer ter medo.
E então tirou do paletó um cigarro, pegou minha mão e deixou a fumaça contar-nos a história de como sobreviver a uma saudade de uma madrugada.
Eu sinto saudades.