terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Navio 24 - carta aos sobreviventes

O som que não era uma sirene de desembarque – mais parecia um pássaro a cantar o falecimento do dia – a despertou, e então as toneladas de chumbo se fizeram existir.

Não flutuava mais, e as águas tormentas e bruscas a jogaram para a beirada da sua vida, em que decidira não viver, mas existir somente, como folha que caiu e ficou na terra molhada, ali, simplesmente caída.

Não havia dúvida de que o navio iria afundar, e não entendia qual seria a sua vez de pesar no mundo, ou do mundo pesar em si. Nos seus braços, nos ombros, na boca, nos olhos. Não havia dúvida de que iria naufragar junto ao navio e aos seus inúmeros ferros e chumbos, e nuvens, e ondas. Tantas ondas e tanta vontade de morrer havia de ter tido durante toda a vida.

Mas o sol estava alto a pino, e a âncora bateu no fundo do mar, no fundo das suas intermitências e dúvidas de como não morrer de vontade de morrer. Agora havia dúvida cruel de como contar aos pássaros e aos outros navegantes que haveria de afundar.

Tão leve menina, tão magra, tão linda e doce, como haveria de ter um fim desses? – Diziam todas as vozes que não sabiam o quanto de chumbo carregava esta.

E a cada gota de todo o oceano que se salgava ria nas minhas costas. Era uma ânsia de querer ter a certeza, porque a pior sensação é de não saber-se afundando ou em terra firme. Mas então deixaria que o navio por si só afundasse suas toneladas de angústia, medo e raiva da vida.


Haveria de ter a certeza de um trágico naufrágio. E na autópsia da menina doce havia pesos e pesos de não saber como viver, alguns pedaços de medo de não saber-se morta, então. E peso do chumbo do navio nas suas costas.