sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Amores imperfeitos não falecem

Retornei para aquele buraco esverdeado e escuro que não habitava há algum tempo, há cores fora dele, e eu me visto que arco-íris para disfarçar os olhos mais escuros que o normal. A temperatura ambiente parece aquecer dores e fazê-las borbulhar.

Gostaria de recordar o senhor no verão, como meu velho se vestia no equinócio? Ternos cheirando à flores molhadas e botões de rosas novos.

Plantei rosas vermelhas na minha janela e a coruja se assusta com o otimismo mórbido que aparece vez em quando nos meus cabelos, há brilho, e eu remexo neles. Eles murcham como flores ressecadas quando meu rosto guarda tristezas demais para não delirar. Delírio nos fios. Há linhas em mim que vibram até hoje com os gritos abafados e as batidas dos pulsos na parede. Naquela parede pincelada de sobriedade esquecida e risos exagerados, choros perturbados. É preciso estremecer as linhas que nos mantém de pé. É preciso rebentá-las e deixar o corpo sentir e arder. Mas as minhas não rebentam, apenas afinam e enfraquecem. Nunca se sabe qual a dor – ou qual o fio – que sustentam um crochê inteiro. As falhas e buracos dão a beleza. Porque os sorrisos só são admirados se carregam borrascas e lágrimas em seus cantos. Os dedos passam sobre a colcha e sentem as saliências e pequenos rombos, acariciar cicatrizes, apertar os nós entre as mãos, roçar a pele em dores que nos costuram aquece. O inverno entra pelas frestas do crochê. Invasão.

Sou feita de rendas esburacadas e botões de amor-perfeito que não vingaram. A renda é esbranquiçada e meio suja, há migalhas de sonhos passados e rascunhos guardados. Os espinhos das rosas que plantei na janela também beliscam minha pele, puxam fio da colcha epidérmica. O inverno não avisa. É como estar lutando para se aquecer com aquele casaco de renda espalhada e gélidos pontos de alguém que eu fui perfurar os braços, o antebraço, causa arrepio e estremece. Rouxinóis vêm me contar que a coruja se afastou faz tempo, eu confundo e deliro sobre saudade, a imagino, mas não há vazio, há transbordamento de misturas sórdidas, sol e luas. Eu tento desesperadamente cobrir os rombos, mas meu crochê já foi costurado metade, não há como desfazer. Há costuras novas e estão sendo feitos bordados castanhos sob os rasgos. Cicatrizes disfarçadas de efeitos, covinhas, características.

No canto marmóreo do quarto há um porta-retrato de quem eu era. O buraco parece se abrir, mas cipós me trancafiam, eu vejo aquelas cores e flores psicodélicas tão familiares, mas não às alcanço. Arranquei-as de mim ano passado e não consegui regar novas. Faço buquês, hoje, de amores-perfeitos meio desfalecidos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário